Um dia de chuva
A árvore fica na encosta de um morro, num paredão que finaliza uma sequência de morros e vales. Atrás, descia uma grande cachoeira, a primeira de tantas que haviam no rio que passava ao lado. Eu via pedaços dela por entre a mata. Aquela área recebia um vento que vinha de quilômetros de serra a perder de vista. Era o final de um platô do grande vale.
O dia marcado para a performance estava nublado e frio. Cheguei no começo da manhã e subi na árvore, que já havia sido tramada com os fios no dia anterior. Ventava tanto que o tronco balançava. Cheguei a pensar que não seria possível seguir com a performance naquele dia. Eu estava só, e a situação oferecia alguns riscos.
Num momento da manhã, uma dinâmica de ventos espraiou as nuvens e expôs partes do azul celeste. Uma remota possibilidade de que o tempo ficasse melhor. Na sequência, outros ventos trouxeram mais nuvens e logo o cinza tomava conta novamente. As rajadas quase contínuas balançavam toda a vegetação do vale ao redor e determinavam ritmos a uma dança da mata. Eu pouco me movia. Me mantinha numa certa estabilidade de movimento que contrapunha o meio a minha volta.
Via ao longe, cortinas de chuva desenhando faixas verticais em tons de cinza. Estavam há muitos quilômetros, e o vento me dizia que em breve chegariam. Passaram muitas horas e a situação se mantinha. No começo da tarde chegaram as primeiras gotas, mas logo parou.
Vieram outras e também se foram. Era apenas um prenuncio de nuvens altas. Gotas apressadas de futura chuva. Eu me cobria com uma capa de chuva a cada nova ameaça. Logo tirava e seguia esperando excitado, na certeza de que cedo ou tarde chegaria. Enquanto isso balançávamos ao vento.
Num momento, fiquei perplexo ao perceber o óbvio. Todas as formas de vida a minha volta esperavam a chuva. As árvores, as aves, o mato, os insetos...todos esperavam. Mesmo as pedras sabiam e esperavam. Havia tensão no ar. Pressão. Sabíamos o que ia acontecer. Sabíamos da transa cósmica entre céu e terra – a água atravessando o ar, penetrando a terra, infiltrando, escorrendo, fluindo por raízes e ductos, atravessando poros. Era uma orgia prometida e todos participaríamos. Não sabíamos ainda se seria uma relação carinhosa ou selvagem. Com que intensidade a água cairia sobre nós. Aguardávamos há horas, estávamos anciosos, e a fricção do vento aumentava a tensão.
Passado horas, já no meio da tarde, ela chegou. Finalmente, o prazer dos fluidos. Gotas grossas caiam do céu. Trovões e raios nas serras vizinhas. A tensão da espera era agora a de corpos molhados. Líquido sonoro. Chuuuva.
As cores estavam muito vivas. O cinza branqueado do céu filtrava e estourava a luz do sol. Aumentaram os contrastes. O verde era mais verde. O branco dos fios enrolados na árvore pareciam saltar. As superfícies brilhavam. Havia uma forte vibração no espaço. Era orgástico. Sentia todo meu corpo vibrar. Sentia cheiro de chuva; terra molhada.
Estava em pé apoiado pelas mãos e pés. A partir de um momento, senti uma forte concentração de energia no centro das palmas das mãos. Sentia uma dor aguda nestes pontos, algo desconhecido, que durou muito tempo. Tinha o corpo cheio, denso.
Já chovia por mais de hora, quando decidi que ia embora. Estava com um pouco de medo, pois haviam trovões e raios próximo. Desci de um nicho a outro da árvore e entendi que ainda não era o momento. Me sentei e segui na experiência. Estava de capa de chuva, mas já com partes da roupa molhadas, minhas pernas e pés encharcados. Não havia nenhum conforto, mas um grande prazer.
Via a chuva molhando o taboão de serras em quilômetros. Via a chuva molhando o pé da árvore. Eu via a chuva. E assim foi por mais tempo até ir aos poucos diminuindo, diminuindo, e sobrar somente gotas guardadas nas folhas das árvores. Gotas singelas que caiam a seu tempo.
Havia agora uma calmaria pós gozo. A terra transpirava vapor, desenhando o ar em finos traços. Compartilhávamos uma espécie de silêncio. Uma contemplação do ambiente pelo ambiente. Algo de renovação. Parte de um ciclo. O céu compunha-se em azul escurecido e nuvens mais esparsas. Ainda se via a claridade dos últimos raios solares. Olhei para cima e vi um espaço de céu limpo, emoldurado de nuvens, a lua crescente e uma primeira estrela.
Era demais. A experiência já não cabia dentro. Transbordou em choro. Chorei como chora uma criança. Sem pudor ou juízo. Meu corpo todo chorava e tremia. Eu urrava e babava. A tempestade era dentro. A chuva caia quente dos olhos. E assim foi por algum tempo até ir parando aos poucos, acompanhando as gotas reminiscentes que ainda caiam das folhas.
Era noite e a performance havia chegado ao fim. Desci. Me ajoelhei ao pé da árvore, coloquei a testa e as mãos na terra e agradeci. Peguei a trilha de volta sem olhar para trás.
Hoje, a memória presentificada ainda faz chover nos olhos. Sinto ter apreendido algo que ainda não consigo formalizar. Talvez nunca consiga. A experiência é única, é individual. E o que posso agora é compartilhar este relato como uma forma de dilatar a ação, estimular o imaginário e convidar a vivências no ambiente natural, como prática de presença e de pertencimento no mundo.
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
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