quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Hominidae

Concebi a performance originalmente como uma provocação social, a partir da ocupação de árvores em centros urbanos, por cerca de oito horas, causando cisões efêmeras no cotidiano dos passantes.

Depois de realizar a ação em diferentes cidades e contextos percebo que, a cada experiência, novas dobras são descobertas a partir dos atravessamentos nos campos da micropolítica, das relações sociais, das singularidades geoculturais, da sensorialidade, da poética e das subjetividades.

Na residência artística "Interações Florestais" em Terra Una - Serra da Mantiqueira, a proposta migrou para mata. Ocupei três árvores, sob a ausência do conflito performer-público, o que possibilitou o desdobramento do trabalho em novas relações entre o corpo homem, o corpo árvore e o ambiente.

Como forma de dilatar e compartilhar tais experiências, criei este blog exclusivamente para compartilhar notações,imagens e reflexões sobre o trabalho, com o desejo de realizá-lo em várias cidades e situações, afim de vivenciar percepções e parâmetros numa espécie de estudo etnográfico, sensorial e estético.




foto: Roberto G Delduque
São Paulo-SP


foto: Roberto G Delduque
São Paulo-SP


foto: Roberto G Delduque
São Paulo-SP


foto: Thiago Carvalho
Uberlândia-MG


foto: Thiago Carvalho
Uberlândia-MG


foto: Domingos Guimaraens
Serra da Mantiqueira-MG


foto: Maria Teresa Ponce
Serra da Mantiqueira-MG


foto: Maria Teresa Ponce
Serra da Mantiqueira-MG

Curitiba - relato de performance

A primeira vez que fiz a performance foi em maio de 2009, na cidade de Curitiba - PR. Eu usava uma camiseta vermelha e alguns fios brancos no cabelo, opções que deixei de usar nas experiências seguintes. Hoje uso camiseta branca e nenhum adereço.

Tentei a princípio, fazer a performance na “Praça do Homem Nú” no centro da cidade, mas quando estava quase terminando de tramar os fios, chegou a polícia e me mandou tirar tudo e descer. Me ameaçou com “voz de prisão”, caso em me recusasse. Decidi acatar.

Procurei a prefeitura para providenciar uma autorização. Descobri que teria que ter o aval da secretaria de urbanismo (direito de uso do solo) e secretaria do meio ambiente. O procedimento burocrático foi um caso a parte. Descobri que a performance já havia começado naquele trâmite. Era a negociação. Muitos telefonemas, apresentação de projeto escrito, material visual e tudo mais. Ninguém sabia o que fazer comigo. Eu pressionava a cada dia. Tinha pressa e impaciência com a velocidade da máquina pública. Ouvi deles, que não se sentiam competentes para dar a autorização. Estavam confusos diante da novidade do requerimento. O funcionário mencionou que eu não poderia fazer, pois era ilegal. Busquei a legislação municipal referente as árvores urbanas e encontrei as seguintes proibições: cortar, ou danificar árvores, e fixar cartazes ou faixas. Não era o meu caso, então não havia impedimentos. Os funcionários não podiam argumentar o não. Sob pressão, cederam a autorização.

Realizei a performance na Praça Rui Barbosa num canteiro, próximo a um ponto de ônibus. Um videomaker, o artista Ângelo Luz, aparecia eventualmente para fazer alguns registros, mantendo uma certa distância. Na maior parte do tempo eu estava só, o que considero hoje loucura ou ingenuidade. O contexto era diverso e muitas vezes pesado. A provocação da ação tinha mais efeito do que eu esperava.

Muitas pessoas interagiram querendo falar comigo. Saber o que eu fazia ali. Se aproximavam, faziam perguntas e afirmações: “ É um protesto, moço? Sobre o que? Para que serve isso? O que tá fazendo ai brother? É artesanato? Arte contemporânea? Você acha que é bonito ser feio? Dá um sorriso para eu tirar uma foto?”
Eu permanecia na ocupação, sem falar e muitas vezes sem me mover da posição em que estava.

Algumas reações eram de empatia. Recebia um sorriso ou outro, percebia pessoas que se aproximavam com curiosodade. Uma mulher disse que o trabalho era bonito. As crianças em geral se empolgavam.

Nos momentos em que o videomaker estava presente, ele era procurado por algumas pessoas que o indagava e recebiam gentilmente, respostas curtas; algo como: “é um trabalho de arte”. Algumas davam seus relatos para a câmera. ( O vídeo pode ser visto na sessão Vídeos Urbanos, deste blog.)

No passar do dia surgiram reações curiosas, a maioria registradas apenas pela escrita.

Um dos momentos que vale contar foi quando eu me posicionei de cabeça para baixo com o objetivo de inverter a energia e fluxo do corpo. Um homem que estava embaixo observando, caiu desmaiado logo na sequência. Não sei o quanto isto pode ou não estar relacionado a ação, mas acredito nas possibilidades de conexões e trocas energéticas entre eu, a árvore e as pessoas que passam com seus diferentes níveis de sensibilidade.

Um grupo de adolescentes parou ali por um tempo. Queriam que eu fizesse algo, qualquer coisa que me tirasse daquele estado da performance. Uma menina dizia: “ desce amor, eu volto pra você, não precisa ficar assim”. Um homem de terno e gravata permaneceu embaixo da árvore por mais de meia hora, mudava de posição, conversava com as pessoas. Tentava falar comigo, e dizia: “isso é arte? É coisa de gente louca, né?”. Uma senhora reclamou que eu estava sujando a árvore. Outra, pedia que eu descesse. Dizia que eu queria suicidar. Que eu não devia fazer isso. Que eu parecia Jesus Cristo.

Um programa jornalístico da Rede Record – O Ric Notícias, fazia uma matéria por ali. O jornalista veio com um sorrisão no rosto, me pedindo uma entrevista, disse que me anunciaria no jornal ao vivo. Eu olhava para ele e não dizia nada. Desmanchou o sorriso e foi embora. O Ângelo (câmera) chegou por ali e o jornalista perguntou a ele o que eu fazia e quem eu era. Fizeram duas chamadas no jornal. A última dizia que as pessoas ali em baixo estavam querendo me linchar, por que eu parecia Judas. Finalizou dizendo que eu era o Ricardo Macaco Alvarenga.

No passar do dia, experienciei uma séria de atitudes violentas reativas ao trabalho. Um cara ameaçou subir na árvore e roubar as bananas. Um mendigo tentou subir, mas não conseguiu. Chutava a árvore e dizia que me derrubaria. Um outro me jogou uma casca de fruta, disse que eu deveria me enforcar. Fez um gesto de me dar um tiro. Um cara, aparentemente de classe média, cerca de 28 anos, passou com um amigo e me ameaçou de morte. Vinha ao longe dizendo: Isso em Curitiba não pode! Será que eu consigo acertar uma pedra há 50 metros? Cuidado que amanhã você pode estar na tribuna, heim? (jornal onde aparecem as notícias criminais). Me senti particularmente abalado por esta ameaça. Na época a cidade passava por uma onda de violência e crimes de grupos neonazistas.


O trabalho surgiu de uma inquietação comportamental. Uma tentativa de deslocamento temporário da ordem social por meio desta ocupação incomum, com potencial de levantar questões em diferentes campos. Existenciais, patrimoniais, ambientais, culturais, políticos, sensoriais. Provocações plantadas num terreno de urgências, a serem pensadas no âmbito das cidades.

Fico pensando nestes relatos como sintomas sócio – culturais. O que eles podem revelar de cada cidade? Como nós artistas podemos misturar o material decantado no fundo da história da formação das cidades e da civilidade? Como podemos contribuir para instigar novas lógicas, novas formas de interação, novas possibilidades de relações humanas?

Sigo investigando, agindo e resistindo.

Uberlândia - relato de performance

Em julho de 2009 realizei a performance em Uberlândia – MG, onde fui contemplado no “Arte Urbana”. Um edital municipal de artes visuais, que seleciona anualmente cinco trabalhos a seres feitos nos espaços da cidade.

A árvore, um ipê rosa que ainda mantinha as últimas flores da estação. Ela fica num calçadão do centro, entre as grades do fórum e um ponto de ônibus, em meio a bancos de cimento espalhados e outras duas árvores. É um lugar de fluxo para alguns, e de espera para outros.

A cobertura do trabalho na mídia é um caso a se detalhar nesta experiência. Houve um grande interesse em noticiar. Um pouco por estar vinculado a um edital municipal, outro tanto por um interesse sintomático em tornar pública esta ação considerada irreverente. A notícia saiu desde emissoras de rádio AM ao jornal da noite da Globo local, com direito a chamadas de efeito durante o intervalo: “Artista pára o centro da cidade”. Para minha surpresa, depois de exibirem a matéria no jornal, ainda fizeram uma chamada no intervalo da novela “Caminho das Índias”, garantindo que a notícia chegasse ao maior número de pessoas possíveis.

Da rede local do SBT, haviam duas equipes, de programas diferentes marcando presença. Uma delas, fez comigo uma entrevista antes da performance. O jornal impresso, colocou uma matéria na capa do caderno Revista no dia seguinte.

Não sei exatamente o que gerou tanto interesse por estas mídias de massa, se era pelo trabalho gerar curiosidade e poder ser mostrado como uma excentricidade, ou se era uma forma de dizer ao povo: não se assustem, é só um artista. Está tudo sobre controle.

Para mim, o mais interessante no fato, foi a oportunidade de “negar”a mídia. Os repórteres e suas equipes foram lá querendo fazer entrevista e eu não falava com eles, não saia do lugar. O silêncio faz parte da performance. Ficava ali olhando o “misancene”. Me divertindo com as situações, como a da repórter da Globo local que subiu num banco de cimento, para ser filmada com o microfone na mão, apontado para mim.

Um dos idealizadores e responsável pelo edital, o artista plástico João Virmondes acompanhou a performance durante quase todo o tempo. Ficava ali sentado em um dos bancos do calçadão. Para quem olhava com mais atenção, era fácil reconhecer que ele tinha alguma relação com o acontecimento. A situação acabou criando uma ambiente de comunicação mediada, entre o trabalho e o público passante. Muitas pessoas iam até ele e perguntava o que era aquilo. Ele explicava que era um trabalho de arte, que fazia parte de um edital municipal, e quando as pessoas seguiam com as perguntas ele ia respondendo com outras perguntas, provocando reflexões, que se configuraram numa ação didática de aproximação entre arte e público. Reconfigurações do ambiente na performance.

A maioria dos passantes, não paravam no local, passavam direto. Algumas olhavam, sorriam, apontavam, ignoravam. Outras tentavam falar comigo. Vi um advogado na porta do fórum que esbravejava e gesticulava apontando para mim, parecia realmente incomodado. A cada ônibus que parava, muitas cabeças se moviam para me ver e comentar. Um senhor, na entrevista à TV disse que eu “tava era muito forgado”. Um garoto disse que eu estava chique. Uma moça, depois de ficar ali por um bom tempo tentando falar comigo, e insistindo que eu descesse, se despediu dizendo: “moço, seu trabalho é muito generoso”. Uma senhora disse, numa entrevista, que ela subiria comigo se não tivesse problemas nas costas, “porque nós devemos estar unidos, pela paz.”

Nos dias seguintes haviam rastros da performance nos comentários sobre “o homem da árvore.” Um prolongamento da ação pela oralidade, que durou algum tempo.

Vale dar o contexto da cidade. Médio porte, tradição política ruralista, população superior a 650 mil habitantes. Se destaca no setor de logística e distribuição de produtos. Tem uma universidade federal que oferece hoje mais de 50 cursos.

...

Cada vez que faço o “hominidae”, muitas variáveis se configuram para dar forma a experiência. A cidade, o local, o contexto, o público, o clima, meu corpo. Certamente existem fatores culturas que já predispõe um “sotaque” nas relações sociais. As cidades tem suas especificidades.

Em Uberlândia, certamente a presença da mídia, dos videomakers e do fotógrafo que contratei, assim como os noticiários que foram dados ao longo do dia, interferiram na ambiência da performance.

Se por um lado, isto possa diluir o potencial provocador no contato ao vivo, por outro, aumentou o alcance da ação. ‘Um homem, passou o dia em cima da árvore, no centro da cidade.’

Poderá está efêmera cisão na paisagem, contribuir na complexificação da cidade?
É uma pergunta para o vento do cerrado, que responde soprando necessidades.


foto: Thiago Carvalho


foto: Thiago Carvalho


foto: Thiago Carvalho

São Paulo - relato de performance

Em agosto deste ano de 2010, fiz a performance no centro de São Paulo, com a parceria de produção do Núcleo Corpo Rastreado, no contexto da residência artística ‘Entorno’.

A árvore fica numa das esquinas da Praça da República, num espaço dedicado exclusivamente à passagem. Não há bancos, ou qualquer outra coisa que convide alguém a parar por ali. É um calçamento entre o prédio da secretaria de educação do estado e uma entrada da estação de metrô, em frente há uma bifurcação de ruas.

Eu estava camuflado nesta paisagem urbana. Um homem em cima de uma árvore tramada de fios brancos. Na proporção da cidade, a ação era mais uma informação entre tantas, mais uma forma de ocupação do espaço público, tão amplamente habitado por sem – casas; mais uma intervenção artística no centro da metrópole.

Nas sete horas de permanência, acompanhei camadas de fluxos de pessoas, ônibus e carros.

A maioria das pessoas passava direto. Muitas ignoravam a ação. Outras olhavam de canto de olho. Algumas paravam, fotografavam, comentavam entre si. Via pessoas que reagiam corporalmente, com surpresa, confusão, curiosidade. Cada pessoa que notava a performance se via diante de uma decisão: olhar ou não, disfarçar, ignorar, interagir. Muitas pessoas não viam. A ação era sutil no contexto. Um cara passou resmungando, parou na esquina e ficou me olhando de cara feia. Foi a única reação de incômodo declarado que percebi. A recorrência mais comum era sorrisos, para mim, ou de mim. Essa reação foi o que mais me interessou nesta experiência, pois foi a primeira vez que aconteceu assim. Eu estava colhendo sorrisos, e me alimentando deles.

Percebi o trabalho como um suspiro naquele espaço de pés apressados. Uma poesia estética, aberta a interpretações. “mais um louco na cidade”, “arte contemporânea”, “protesto”, “ uma moradia”... coisas que ouvi. Seja como for, havia sutileza na reação da cidade que não me hostilizava, experiência que me deu um contraponto com o que aconteceu em Curitiba-PR. (relato no texto Hominidae em Curitiba).

Pela primeira vez, senti vontade de romper o silêncio na proposição do trabalho. Algumas pessoas pararam e perguntaram o que eu fazia ali. Eu fiquei olhando para elas, garantindo um canal de comunicação, mas não respondi em palavras. Mentalmente eu respondia perguntando: o que vocês fazem ai embaixo? Teria sido instigante saber, de cima da árvore, o que as pessoas faziam ali embaixo, atravessando uma esquina no centro da sexta cidade mais populosa do mundo.

Esta é uma idéia possível de ser incorporada em outras ocupações, que certamente cria novas dobras na performance.

Durante a ação, enquanto ouvia música em um Ipod, como faço em alguns momentos, fui percebendo conexões estética com as pessoas que passavam com seus fones. Era uma cena muito recorrente, o que me estimulou a ficar horas ouvindo música, vivenciando a interferência deste elemento sonoro na composição de ambientes de percepção.

Ao final da permanência, não tirei os fios da árvore. Soube que seguiam lá três semanas depois, e talvez ainda estejam. Em Curitiba e Uberlândia, os fios da parte baixa do tronco não duraram até o dia seguinte, foram cortados e deixados no chão.

Acredito que os relatos desta performance forneça alguns Indícios das particularidades dos processos culturais, sociais e políticos e nas formas de ocupação e volume de cada cidade. Evidenciando algumas diferenças regionais neste país continental.

Realmente. Em cada árvore, em cada cidade, ou em cada vez, uma experiência se dará organizada a partir da coexistência de uma gama de variáveis.


foto: Roberto G Delduque


foto: Marisol Cordeiro


foto: Roberto G Delduque

VÍDEOS urbanos

Curitiba



Uberlândia



São Paulo

VÍDEOS da mata

Vale do poente



Do outro lado do rio



Vale das samambaias



Sobre os vídeos:

Vale do poente
Está foi a primeira árvore e a única em que fiz a performance duas vezes. É uma linda e forte presença na beira da estrada de terra, que ligava algumas fazendas da região.
O céu aberto deste lugar possibilitava acompanhar todo o movimento do sol na passagem do dia, com direito a um poente privilegiado.
O vídeo feito aqui, contempla a performance em quatro de suas oito horas. Ele extrapola sua função de registro, sustentando - se na linguagem audiovisual com uma bela fotografia e dinâmicos efeitos da passagem de luz, evidenciados pela velocidade acelerada na edição.

Do outro lado do rio e Vale das samamabaias
Composições audiovisuais feitas a partir de ensaios fotográficos da tramagem dos fios e ocupação de nichos.


Sobre vídeos e possibilidades
A performance é uma experiência temporal e tem sua efemeridade como condição.

Os vídeos feitos a partir de registros da ação, embora possibilitem estruturas narrativas e algumas ressonâncias do que aconteceu, constituem fragmentos de um verbo no passado, que transforma o potencial dinâmico da performance realizada, em visualidades estáveis.

É preciso portanto dicerni-los da ação em si. São produtos de uma outra linguagem, e muitas vezes apenas documentos visuais de uma ação.

Ao longo das experiências com a performance, tenho repensado sobre a importância ou o potencial em se fazer o registro videográficos e como usá-los.

Como sou eu, o editor da maioria dos vídeos e os faço a partir de imagens captadas por outras pessoas, tenho a cada novo arquivo, o desafio em compor com imagens do meu próprio trabalho, feitas pela perspectiva do videomaker. Com exceção de duas situações, uma na mata e outra na cidade, onde optei por captar com câmera parada.

A partir destes exercícios de composição visual-digital, tenho me interessado em transpor o registro, concebendo novas possibilidades de produzir vídeos hominidae, que embora estejam vinculadas a performance, constituam um trabalho a ser pensado sob a ótica do audiovisual.

Hominidae na mata

Depois das experiências urbanas com a performance em Curitiba- PR e Uberlândia – MG, tive a oportunidade de vivenciar outras potencialidades do trabalho na residência artística ‘Interações Florestais’, na ecovila de Terra Una (Serra da Mantiqueira – MG), entre abril e maio deste ano de 2010.

Realizei a performance em três árvores, nos arredores da ecovila. Levei comigo somente frutas e água. Eu tramava os fios, subia pela manhã e descia ao anoitecer, quando a umidade e o frio chegavam sem sobreaviso. Era outono e o inverno da serra já anunciava sua chegada.

As árvores eram de médio porte. Estavam em encostas de morros e tinham, logo abaixo, afluentes de água cristalina, contornados de mata ciliar. Guardavam entre si uma distância de alguns quilômetros em trilha. Eram de espécies diferentes, com as folhas e troncos bem característicos de cada uma. Não saberia identificá-las.

Nomeei os ambientes segundo imagens de afetividade: ‘vale do poente’ onde se pode acompanhar todo o percurso do sol no dia; ‘vale das samambaias’ onde havia um campo de samambaias enormes, que me passavam em altura e se abriam lateralmente em metros; e ‘do outro lado do rio’, cuja a trilha atravessava um dos afluentes.

Cada árvore um ser de peculiaridades. A textura da casca, o tamanho e desenho das folhas, a forma e distribuição do tronco e dos galhos. Variações de uma interessante trama de escolhas, em que cada uma, dentro das possibilidades, decide crescer a seu modo, relacionando-se diretamente com o meio.

As experiências na mata, sob a ausência do conflito performer-público, possibilitaram vivenciar outras camadas da performance, que abriram campo para novas relações entre o corpo homem, o corpo árvore e meio natural.


foto: Domingos Guimaraens
vale do poente


foto: Julio Callado
vale do poente


foto: Domingos Guimaraens
do outro lado do rio


foto: Domingos Guimaraens
do outro lado do rio


foto: Domingos Guimaraens
vale das samambaias

Questões que movem o trabalho

Relatos de um diágolo entre “eus” durante a performance

Na árvore do ”vale da samambaia”, havia um nicho no tronco, onde eu podia ficar sentado em lótus, confortavelmente. Quando subi, logo me coloquei nesta posição. Sem programação prévia comecei a fazer uma espécie de prática aleatória, tocando nas memórias de minha experiência com yoga, meditação e sokushin. Quando me dei conta do que estava fazendo, interrompi o processo me dizendo:
– Mas isso não é o seu trabalho. Você não veio aqui fazer meditação ou yoga.
– Então o que é o trabalho?
– É principalmente um exercício de presença, percepção e atenção. Quando ativo minha consciência na respiração deixando-a um pouco mais profunda, sinto meu corpo expandir-se. Localizo regiões de tensão muscular e tento dissolvê-las. São técnicas. Sinto o corpo mais leve e ao mesmo tempo mais cheio. Experiências que ativo a partir dos anos de estudo do corpo.
– Isso faz parte do trabalho?
– Acho que sim. Elas estão no meu corpo.
– Mas como superar a técnica? Como estar presente? Como manter-me atento? Sinto-me meio? Quando?
– Estar é um exercício. Escapo, volto, escapo...
Num momento, me percebi com um canal de criatividade aberto. Via trabalhos inteiros se organizando em pensamentos: ações, formas, cores, lugares. Quando percebi, estava projetando ações, ao mesmo tempo que ativava memórias da infância. Tentei interromper:
– Este não é seu trabalho, não é terapia, nem momento de criação. A performance exige estar aqui, agora.
– Mas interromper é uma repressão a um estado. Será que bloquear estes pensamentos faz parte do trabalho?
– Acho que não. Pensamentos são presença.
– Então o que é o trabalho?
– É contraposição ao hábito de movimento diário. É sensibilização. É devir árvore.
– E o que mais?
...

Sigo me perguntando.


Seja na cidade ou na mata, depois que tramo os fios, paro em algum nicho, me acomodo e me pergunto: o que estou fazendo em cima da árvore?
Começou a performance.

Desejar ser - de Manuel de Barros

Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.

Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.


Manoel de Barros
Livro sobre nada.

O corpo - ou - Como habitar uma árvore

Como habitar uma árvore por horas?

Entre sentado, de pé e deitado, todas as posições e nenhuma ao mesmo tempo.

As responsabilidades de apoio vão sendo distribuídas por diferentes partes. Busco adaptar-me as curvas e bifurcações, numa tentativa de aconchego e sujeição ao tronco. Amoldo meu corpo nos nichos de ocupação. Investigo uma distribuição equilibrada de tônus a cada movimento ou posição. Mapeio tensões localizadas e procuro equilibrá-las no limite de não cair; um acordo com a gravidade, meu corpo e a árvore buscando uma certa economia do esforço.

A situação de permanência e deslocamento neste habitat, exige novos padrões de corporalidade, mecanismos de inteligência e adaptação do movimento, gerando negociações estruturais.

Dedico uma atenção especial a respiração, deixando-a um pouco mais profunda, porém de forma orgânica, atento a seu fluxo livre, vivenciando o potencial de sensibilização a partir das trocas com o ar.

No encontro de peles - a minha e a da árvore - há uma sensibilização refinada neste órgão de superfície gerando informações e estímulos que modificam provisoriamente o corpo dilatado na ação. Também os cheiros e sons constituem fator de mobilidade das percepções.

Obviamente a ação na mata e na cidade recebe estímulos muito diferentes e consequentemente propicia vivencias corporais marcadas por caracteristicas de cada ambiente.

Em ambos, senti em alguns breves instantes, meu corpo desaparecer . Viro árvore. Ou viramos uma outra coisa. Experiências de intercorporeidade. Sensorialidades ativadas no trabalho de estar presente, manter-me sobre a árvore, sobre mim mesmo, posicionado no mundo.

É possível sentir o corpo árvore, a pulsão vegetal, que contem em si muitas informações sobre os movimentos internos, a estabilidade e o fluxo de energia.

Um campo aberto a múltiplas experiências de corporalidades.

Necessidades do corpo
A mobilidade, durante as oito horas de performance, é dada segundo necessidades.

Em geral as árvores que habito tem em média de três a cinco nichos de ocupação. Eles possibilitam a estabilidade de algumas posições.

O movimento e permanência são determinados tanto por estimulo do meio, tal como a necessidade de abrigar-me do sol nos períodos de mais intensidade, como do corpo, nas necessidades de rearranjos dos músculos e ossos, do pensamento e do estado emocional. Arrisco a dizer que também podem ser determinados por necessidades da árvore.

Uma outra questão é a alimentação. Eu poderia ficar em jejum,ou comer qualquer coisa, mas decido por comer frutas, em geral bananas e maçãs. Além de me sustentarem energeticamente, elas são elementos estéticos da performance.

Em geral tomo pouca água e não urino.

Na cidade, urinar durante a performance não seria possível sem descer, e nunca aconteceu. Na mata este é um fato facilmente administrado, mas nos dois ambientes, meu corpo parece entrar num processo de economia líquida e tal necessidade não aparece. Fico as oito horas sem urinar, o que em geral faço meia hora depois que desço.

O sol

O sol me manteve aquecido naquele dia frio de outono na serra.
Recebia sua luz e calor todo o tempo.
Fui sentindo as diferenças na intensidade dos raios no passar do dia.
No meio da tarde sentia tão claramente momentos da diminuição na intensidade, que olhava o sol para ver se não havia sido coberto por nuvens. E não. Era percepção mesmo.
O afastamento.
Passagem.




foto: Domingos Guimaraens



“Só mora com intensidade aquele que já soube escolher-se.”

Gaston Bachellar, em A poética do Espaço

A árvore - especulações

Além das vivências práticas, ler “A vida secreta das plantas” (fragmentos num texto mais abaixo) aguçou minha imaginação e percepção em relação aos vegetais. O livro é uma interessante compilação de estudos científicos cujos métodos objetivaram comprovar que as plantas tem emoção, memória e reações muito elaboradas a estímulos diversos.

Nesta ação de parceria com as árvores, sinto cada vez mais o potencial em relacionar – me com elas. Estabelecer trocas, perceber e ser percebido.
Na permanência pressiono a árvore com meu peso e o tronco se enverga um pouco. Fico ali, no mesmo lugar por até mais de horas. Penso: terá ela uma estratégia dinâmica de harmonizar tensões? Será que as informações destas alterações chegam até suas raízes?

Terá ela reações à minha presença energética? Ao meus pensamentos e emoções?

Haverá alguma alteração em seu corpo por causa dos fios de malha branco enrolados?

Sempre tomo cuidado para não apertar os fios. Não quero machucar a pele da árvore.
Em uma delas, removi um parasita de tronco grosso que há anos devia estar sugando sua seiva. Foi uma forma de cuidado e carinho. Trocas.

Penso sobre nossas energias e permeabilidades. Considerando o campo eletromagnético como uma propriedade dos seres vivos, trocas físicas e energéticas se dão entre nossos corpos. Arrisco a dizer até que um novo campo é criado a partir da fusão dos nossos campos. E que esta atmosfera pode ser acessada por pessoas sensíveis a tais percepções.

Acredito que os vegetais guardam muitos segredos, memórias e sabedorias. Contêm em suas células, estórias do mundo. E a construção do conhecimento formal muitas vezes subestima estes valores, tão presente nas culturas populares, indígenas e determinadas comunidades rurais.

O contato atento, aberto e desprovido de pré conceitos, pode nos abrir caminhos sensoriais. Não falo de misticismo, mas de percepções físicas. Não há como negar a força de uma árvore e nem mesmo sua pulsão. Se levarmos em consideração apenas sua potência como bomba hidráulica, absorvendo dezenas de litros de água do solo por dia e liberando a maior parte na transpiração, já podemos considerá-la” um mecanismo fantástico”. Se pensarmos em sua habilidade em armazenar energia solar, então, é incrível. Seu corpo é adaptado as intempéries, suas raízes adentram os solos mais duros, suas copas se movimentam nas coordenadas espaciais, suas estratégias de sobrevivência são extremamente elaboradas.

Se observarmos os desenhos dos troncos e galhos, encontraremos um padrão básico na conformação da vida. As ramificações são as mesmas das veias, artérias e canais de fluidos corporais, da distribuição dos neurônios, da disposição dos rios, das trilhas, dos caminhos e estradas. Funções de fluxo, alimentação, escoamento. Padrões estéticos de eficiência da natureza.

Em meio a tantas complexidades, acredito nas trocas. No taiki, concepção oriental de comunicação pela energia, no respeito e reverência as formas de vida, na possibilidade de aprender com as plantas e no amor como nutriente.

Sei que aprendi coisas nestas experiências que ainda não consigo formular.

Sigo.

O Livro das Ignorãças - poema nº IX - Manuel de Barros

Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz.

Manuel de Barros

O tempo

Meu devir árvore não passou de oito horas. Não deu tempo do mato crescer na boca, ou do musgo fixar-se na pele.
Mas foi um tempo de me perceber paisagem.

Acompanhei o vento esculpindo nuvens. O sol iluminando o dia.
A chuva molhando o oco. A árvore esculpindo o corpo.

Fluxos de seiva e sangue.

Sujeito às passagens.
Sujeitos das passagens.

Livro de registro de visitantes

Uma joaninha verde e brilhante com bolinhas esteve aqui.
Diferentes espécies de formigas passaram sobre meu corpo. Moravam ali.
Uma aranha se defendeu de um toque acidental, com picada e veneno. Doeu bastante e só.
As aves, traziam no corpo ricas combinações de cores: peito amarelo - asas pretas, peito laranja - asas vermelhas, peito branco - asas azuis, peito cinza - asas pretas...
Cantos diversos. Retornos na tarde, dos pássaros da manhã... Um bando de cinco ou seis pousou nos galhos mais altos. Tons terra em suas penas. Um beija-flor também parou. Tucanos passaram. Pássaros forrageavam no capim. Uma águia. – Salve carcará! – “Pega, mata e come. “
Mosquitos e borrachudos fizeram banquete.
Uma vespa amistosa na ponta dos dedos.
Borboletas amarelas, verdes; reluzentes.
Uma taturana de rajas amarelas e pretas, e pêlos brancos no cós da calça. Retesamento do corpo à primeira imagem.
Sinfonia de grilos, revezando-se em grupos e orquestras.
O capim se moveu indicando presença animal, seriam lagartos?
Vez ou outra algum passante hominidae, indo ou vindo do trabalho para casa – fazendas ao redor. Vi alguns bois e vacas.
Eventualmente a chegada de algum dos residentes que vinham visitar e tirar fotos.



Embora esta lagarta tenha sido encontrada no caminho e não na árvore, decidi postar sua foto como representante da biodiversidade local.

Um relato poético da performance – do outro lado do rio

Um dia de chuva

A árvore fica na encosta de um morro, num paredão que finaliza uma sequência de morros e vales. Atrás, descia uma grande cachoeira, a primeira de tantas que haviam no rio que passava ao lado. Eu via pedaços dela por entre a mata. Aquela área recebia um vento que vinha de quilômetros de serra a perder de vista. Era o final de um platô do grande vale.

O dia marcado para a performance estava nublado e frio. Cheguei no começo da manhã e subi na árvore, que já havia sido tramada com os fios no dia anterior. Ventava tanto que o tronco balançava. Cheguei a pensar que não seria possível seguir com a performance naquele dia. Eu estava só, e a situação oferecia alguns riscos.

Num momento da manhã, uma dinâmica de ventos espraiou as nuvens e expôs partes do azul celeste. Uma remota possibilidade de que o tempo ficasse melhor. Na sequência, outros ventos trouxeram mais nuvens e logo o cinza tomava conta novamente. As rajadas quase contínuas balançavam toda a vegetação do vale ao redor e determinavam ritmos a uma dança da mata. Eu pouco me movia. Me mantinha numa certa estabilidade de movimento que contrapunha o meio a minha volta.

Via ao longe, cortinas de chuva desenhando faixas verticais em tons de cinza. Estavam há muitos quilômetros, e o vento me dizia que em breve chegariam. Passaram muitas horas e a situação se mantinha. No começo da tarde chegaram as primeiras gotas, mas logo parou.

Vieram outras e também se foram. Era apenas um prenuncio de nuvens altas. Gotas apressadas de futura chuva. Eu me cobria com uma capa de chuva a cada nova ameaça. Logo tirava e seguia esperando excitado, na certeza de que cedo ou tarde chegaria. Enquanto isso balançávamos ao vento.

Num momento, fiquei perplexo ao perceber o óbvio. Todas as formas de vida a minha volta esperavam a chuva. As árvores, as aves, o mato, os insetos...todos esperavam. Mesmo as pedras sabiam e esperavam. Havia tensão no ar. Pressão. Sabíamos o que ia acontecer. Sabíamos da transa cósmica entre céu e terra – a água atravessando o ar, penetrando a terra, infiltrando, escorrendo, fluindo por raízes e ductos, atravessando poros. Era uma orgia prometida e todos participaríamos. Não sabíamos ainda se seria uma relação carinhosa ou selvagem. Com que intensidade a água cairia sobre nós. Aguardávamos há horas, estávamos anciosos, e a fricção do vento aumentava a tensão.

Passado horas, já no meio da tarde, ela chegou. Finalmente, o prazer dos fluidos. Gotas grossas caiam do céu. Trovões e raios nas serras vizinhas. A tensão da espera era agora a de corpos molhados. Líquido sonoro. Chuuuva.

As cores estavam muito vivas. O cinza branqueado do céu filtrava e estourava a luz do sol. Aumentaram os contrastes. O verde era mais verde. O branco dos fios enrolados na árvore pareciam saltar. As superfícies brilhavam. Havia uma forte vibração no espaço. Era orgástico. Sentia todo meu corpo vibrar. Sentia cheiro de chuva; terra molhada.

Estava em pé apoiado pelas mãos e pés. A partir de um momento, senti uma forte concentração de energia no centro das palmas das mãos. Sentia uma dor aguda nestes pontos, algo desconhecido, que durou muito tempo. Tinha o corpo cheio, denso.

Já chovia por mais de hora, quando decidi que ia embora. Estava com um pouco de medo, pois haviam trovões e raios próximo. Desci de um nicho a outro da árvore e entendi que ainda não era o momento. Me sentei e segui na experiência. Estava de capa de chuva, mas já com partes da roupa molhadas, minhas pernas e pés encharcados. Não havia nenhum conforto, mas um grande prazer.

Via a chuva molhando o taboão de serras em quilômetros. Via a chuva molhando o pé da árvore. Eu via a chuva. E assim foi por mais tempo até ir aos poucos diminuindo, diminuindo, e sobrar somente gotas guardadas nas folhas das árvores. Gotas singelas que caiam a seu tempo.

Havia agora uma calmaria pós gozo. A terra transpirava vapor, desenhando o ar em finos traços. Compartilhávamos uma espécie de silêncio. Uma contemplação do ambiente pelo ambiente. Algo de renovação. Parte de um ciclo. O céu compunha-se em azul escurecido e nuvens mais esparsas. Ainda se via a claridade dos últimos raios solares. Olhei para cima e vi um espaço de céu limpo, emoldurado de nuvens, a lua crescente e uma primeira estrela.

Era demais. A experiência já não cabia dentro. Transbordou em choro. Chorei como chora uma criança. Sem pudor ou juízo. Meu corpo todo chorava e tremia. Eu urrava e babava. A tempestade era dentro. A chuva caia quente dos olhos. E assim foi por algum tempo até ir parando aos poucos, acompanhando as gotas reminiscentes que ainda caiam das folhas.

Era noite e a performance havia chegado ao fim. Desci. Me ajoelhei ao pé da árvore, coloquei a testa e as mãos na terra e agradeci. Peguei a trilha de volta sem olhar para trás.

Hoje, a memória presentificada ainda faz chover nos olhos. Sinto ter apreendido algo que ainda não consigo formalizar. Talvez nunca consiga. A experiência é única, é individual. E o que posso agora é compartilhar este relato como uma forma de dilatar a ação, estimular o imaginário e convidar a vivências no ambiente natural, como prática de presença e de pertencimento no mundo.

Performance, público e registro - entre presenças e ausências

“Hominidae” foi concebido originalmente como uma provocação social, a partir da intervenção estética e permanência em árvores de centros urbanos. O contraponto no ritmo acelerado das cidades, gera reflexões ligadas a comportamento, cultura, meio e política sinalizadas pelas falas de transeuntes que de alguma forma, interagem com o trabalho.

Sinto na ação, meu corpo sendo atravessado pelas questões e reverberações do público passante. Seja por provocação, conflito, contemplação ou indiferença, a comunicação acontece.

Durante as experiências fui descobrindo outros desdobramentos sensoriais do trabalho. A relação corpo-árvore e as aberturas de canais de percepção que se dão nestas oito horas de ocupação.

Realizada na mata, em Terra Una e arredores, sob a ausência do conflito performer – público, potencializou-se uma relação de intercorporeidade na biosfera. Um devir árvore, que aprofundou questões do trabalho.

Durante a performance no “vale do poente” cuja árvore ficava a beira de uma estrada de terra, passaram algumas dezenas de pessoas de moto, carro e a pé. Eram moradores da região e residentes da ecovila de Terra Una. Provavelmente todos sabiam, ou facilmente souberam o que eu fazia ali. Não havia conflitos sociais.

Nos outros ambientes, “vale das samambaias” e “do outro lado do rio” fiz a performance sem a presença de nenhuma pessoa ou câmera. Performance sem público. Experiência individual. Os conflitos estavam entre eu e eu mesmo, e entre eu e o meio. E eram muitas as questões. (Veja no blog o texto: Questões que movem o trabalho)

Perceber-me só, sem a presença de expectadores, me levou a uma vivência muito íntima de percepção e permeabilidade com o meio. Não havia atravessamentos humanos ou riscos de representação. Qualquer preocupação estética na permanência era sinônimo de eficiência, economia do corpo, sujeição circunstancial. Sem fotos, sem vídeos. O valor era a experiência individual. Um exercício solitário de presença.

Qual seria o valor artístico deste tipo de trabalho?

Desde a década de 70, Bruce Nauman, Letícia Parente, Joan Jonas, Vito Acconci e inúmeros outros já faziam suas ações de forma privada, sem púbico, prolongando suas memórias e ações através do registro em vídeo e outras mídias.

Registros de trabalhos de performance trazem um campo delicado de discussão. Eles de alguma forma prolongam a ação, ativam memórias, documentam narrativas e idéias, indicam formas, mas não são a performance. Tem sua importância artística e sua fragilidade potencial. Podem levar a interpretações ligadas diretamente a mídia de registro, mas desfocada da ação performática. O risco é ainda maior quando a mídia é imagem. Sua força pode desviar a intenção do artista dos valores primordiais do trabalho, assim como também podem contemplar e complementar a ação, mas sendo ainda registros e não a ação em potencial.

Decidi nesta performance fazer das notações, textos e diários, a fonte principal de registro e desdobramento, compartilhando percepções, pensamentos, narrativas e poesia. Obviamente, eles não deixam de ser um recorte pessoal. Constrói-se a partir das minhas percepções e escolhas na linguagem escrita.

Apaixonado por imagem e diante de paisagens singulares, não resisti em fazer também vídeos e fotos. O registro da ação, foi feito somente no “vale do poente” a partir de uma câmera parada. As outras imagens foram captadas em dias distintos da performance. No “vale das samambaias” e no “do outro lado do rio” registrei a feitura da trama de fios no dia anterior a permanência, e numa espécie de ensaio fotográfico e porque não dizer, num falseamento da performance, captei imagens do meu corpo nos possíveis nichos de cada árvore.

O resultado são dois trabalhos audiovisuais, que embora falem da performance, configuram-se em outra mídia – produto de investigações de composição e linguagem.

A vida secreta das plantas

Livro escrito pelo biólogo e historiador Peter Tompkins e pelo filósofo Christopher Bird

- uma compilação de estudos científicos de século XX que tentaram comprovar a presença de emoção, sensibilidade, percepção, memória e outros fatores vitais nos vegetais.

O livro começa relatando um experimento feito por Cleve Backster, um policial especialista no aparelho detector de mentiras. Um dia decidiu colocar os eletrodos de um dos seus detectores sobre a folha de uma planta que havia em seu escritório, uma dracena, planta tropical que lembra vagamente uma palmeira.
Verificou que as oscilações do aparelho desenhavam uma curva semelhante à obtida ao submeter o ser humano a um estímulo emotivo de breve duração.

Um dia, mergulhou uma das folhas da planta sem destacá-la, numa xícara de café quente para ver o que acontecia, o detector não indicou nenhuma reação. Decidiu então submeter a folha uma ameaça maior: queimá-la No instante em que teve esse pensamento, antes mesmo de apanhar a caixa de fósforos, a agulha se pos a oscilar freneticamente. Por mais absurdo que parecesse, a planta havia percebido o pensamento de Backster.

Ele prosseguiu em suas experiências. De um grupo de seis estudantes, sorteou um para destruir uma das duas plantas que havia em uma sala, durante a madrugada. No dia seguinte, um detector de mentiras foi ligado a outra planta. O aparelho não registrou nenhuma perturbação quando os cinco inocentes entraram na sala. Mas, quando o “assassino” apareceu, acusou intensa agitação. A planta registrara na memória a morte da companheira.

Vogel, influencidado por Backster fez outros experimentos. Convidou um grupo de cépticos psicólogos, médicos e programadores de computador, pedindo-lhes que sentassem em círculo e conversassem sobre vários assuntos, para ver que reações as plantas seriam capaz de captar. Por uma hora o grupo falou sobre vários assuntos e a planta praticamente não deu resposta. Quando todos estavam convencidos que tudo não passava de uma tapeação, um deles sugeriu: Que tal falarmos de sexo? Para surpresa geral a planta deu sinal de si e a ponta que traçava o gráfico começou a oscilar ferozmente.

Sauvin também investiu nestes caminhos científicos estudando a relação com suas plantas e o que elas poderiam captar de suas emoções. Passando uns dias em companhia de uma moça, em sua casa de campo, comprovou que suas plantas, há 130 quilômetros, reagiram de modo considerável ao prazer sexual, com o oscilador acusando uma frequência máxima no momento do orgasmo.


O engenheiro eletrônico George Lawrence após comprovar a captação de sinais interestelares por plantas presume que existe uma consciência celular nos vegetais e infere a possibilidade de que os humanos tenham uma sensibilidade latente, bloqueada por motivos distintos.

Muitos cientistas estudaram a influência da música no desenvolvimento das plantas. È muito interessante perceber que elas fazem escolhas a partir de estímulos diversos. Na pesquisa da Sra. Retallak. As plantas cresciam em direção as caixas de som que tocavam prelúdios de Bach, inclinando até 35 graus e inclinaram-se em ângulos superiores a 60 graus em direção a musica de Ravi Shankar. Em oposição a este movimento as plantas se afastavam das caixas de som que tocavam rock como Led Zeppelin, Jimi Hendrix e Vanilla Fudge, chegando a tentar escalar as paredes de vidro deslizante da estufa em que se encontravam. Pelo jeito, não gostam de rock...rsrsr.

O químico agrícola Washington Carver, considerado um notável gênio disse a um visitante em seu laboratório, pouco antes de sua morte, apontando para uma flor em sua mesa de trabalho: “ quando toco uma florzinha, toco o infinito. Ela nos procedeu na Terra e continuará sua existência pelos milhões de anos que hão de vir. Através dela, me comunico com o infinito, que nada mais é senão uma força silenciosa.”

O livro também cita Bach com seus florais, remédios que tem por base a radiação de determinados flores captadas por gotas de orvalho. Mc Innes seguindo esta linha de estudo, criou um liquido “exultação” que alem de remédio, servia como fertilizantes.

Os relatos em geral são muito curiosos. E concebem de certa forma, um casamento entre ciência e poesia, experimentos empíricos e sensibilidades subjetivas.

O quanto será possível alargar nossas percepções? Quantos sentidos ainda podemos descobrir?

quinta-feira, 6 de maio de 2010

larva desenhista

Residência em Terra Una – Prêmio Interações Florestais – conexão artes visuais Serra da Mantiqueira – MG

hominidae na mata atlântica

Depois das intervenções em centros urbanos, Curitiba PR e Uberlândia MG, o trabalho se estende à residência em Terra Una, onde assume outro formato. A provocação e o confronto com os passantes na via urbana, da lugar ao movimento da mata com sua diversidade de plantas e animais.

Um desafio está proposto. Que árvores habitar? Muitos fatores influenciam na viabilidade em habitar uma árvore. O tamanho, as ramificações dos galhos, a saúde da árvore, o local onde se encontra. Como não há utilização de redes, cordas ou estruturas que sirvam de suporte para o corpo, há necessidades estruturais específicas.

Na mata atlântica, um dos biomas de maior biodiversidade, há muitas árvores, a grande maioria de copas muito altas, com ramificações concentradas nas extremidades. Estas por seu grande porte, dificultam a subida e a permanência do corpo.

As vezes me pergunto se sou eu quem escolhe as árvores ou se sou escolhido por elas.

Além de fatores técnicos, há também a perspectiva visual do ambiente, a luz, a fotografia e todo o conjunto que compõe a estética do trabalho.

A melhor árvore que encontrei está a beira de uma estrada de terra, e ao lado há um poste de luz e fiação elétrica. Como há uma transposição da performance da cidade para a mata, o poste aparece como elemento de ligação entre o habitat natural e a intervenção humana.

Após uma semana de ambientação na ecovila, seguem as primeiras ações. A residência tem duração de um mês.
Em breve seguem os relatos.

domingo, 4 de abril de 2010

hominidae – relato de performance

Na caótica turbulência da cidade, há espaços para novas paisagens.

Numa árvore, o tronco tramado em fios brancos, convida o olhar a uma espiral que ascende à copa. Sobre ela, um homem.

Aos que acompanham sua ação, percebem que pouco se move. Ocasionalmente transita de um nicho a outro da árvore. Às vezes é encontrado de cabeça para baixo, amarrado ao tronco pela cintura.

Ao longo do dia, numa permanência de cerca de dez horas, não toca o solo, se alimenta de frutas, ouve música em um ipod e lê livros; o último uma compilação de um curso dado por Merleau-Ponty , entitulado ‘a natureza’.

Normalmente não reage as tentativas de comunicação verbal dos transeuntes, e mediante tentativas persuasivas, olha o comunicante nos olhos e tapa a boca com uma das mãos.

O corpo na ação é permeado por um trabalho de respiração e ajuste de tonalidade muscular, procurando uma adaptação ao desconforto do substrato na temporalidade dilatada da ocupação.

A aparente simplicidade da ação, gera uma complexa rede de reações que revelam a natureza da provocação. A interpretação mais comumente anunciada é que se trata de um protesto. “Mas sobre o que?” “Porque o silêncio?” “O que faz este homem?” “Seria um trabalho de arte?”

Agressões verbais e ameças são frequentemente anunciada: “Desce!” “Vou subir e te derrubar daí.” “Será que consigo acertar uma pedra há cinqüenta metros?” “Isso na cidade não pode!” “Cuidado que você pode aparecer nas páginas criminais do jornal de amanhã!”

Um jornalista de um canal de TV aberta, após visitar o local e receber uma recusa em ter uma entrevista com o homem, que não falava com ninguém, fez um anuncio ao vivo, dizendo que as pessoas que ali estavam queriam linchar o homem, porque ele parecia Judas. Comentário esse que antecedeu independentemente ao de uma mulher que dizia que ele parecia Jesus Cristo.

Há também quem passe e estabelece empatia com a ação: “Nossa moço, que generoso”.

Nas projeções da experiência estética, nota-se o espectador desprevenido, ‘um público passante’ com reações que vão da indiferença a ameça, da contemplação a repulsa. A maioria dos que se manifestam verbalmente, sinalizam o desejo imanente de ‘vigiar e punir’ o transgressor, um grito pela normatização do comportamento social vigente. O que se quer é que o homem desça e que a paisagem volte a ser como antes, uma árvore para muitos “invisível” habitada por pombos, insetos e quem sabe alguns micos.

hominidae








fotos: thiago carvalho

performance realizada em Uberlândia-MG
edital: arte móvel urbana.

um estudo da obra 'a natureza'


este livro é uma transcrição de cursos dados por Merleau-Ponty no Collège de France, de 1957 a 1960, um ano antes de sua morte.
como referência primordial do projeto 'hominidae', algumas reflexões e citações serão postadas neste blog.

'a natureza' - Merleau-Ponty - incurso sobre o conceito - de Aristóteles a Whitehead

Falar de natureza é falar do inalcançável enquanto conceito, ou verdade. A ciência, a filosofia e o senso comum, tentam dar conta deste entendimento da existência. Esta permeabilidade inevitável de ser e estar, individuo e ambiente.

O que é natural? Somos natureza ou derivamos dela? Como percebê-la? Olhando uma paisagem bucólica? Observando o comportamento social dos animais ou dos humanos? Atravessando a rua de um grande centro urbano? Contrapondo aos artifícios? Revendo as ciências? Refletindo sobre as catástrofes? Ou sobre o “belo”?

Seguem citações da obra:

Há séculos a filosofia tenta alcançar e formalizar esse pensamento. Aristóteles dava aos corpos um destino qualitativo, finalidade. ‘A natureza dos corpos leves é subir’. Considera a idéia de destino, ligação, alma do mundo. Dois mil anos depois, vemos permanecer a idéia de finalidade imanente a natureza. Em Descartes e Newton porem, ela aparece sublimada em Deus. O elemento novo reside na idéia de infinito, devida à tradição judaico-cristã.

A Natureza desdobra-se em Naturante e Naturado. É em Deus que se refugia tudo o que podia ser interior á Natureza, ela perde seu interior; é a realização exterior de uma racionalidade que está em Deus. Finalidade e causalidade já não se distinguem e essa indistinção exprime-se na imagem da ‘máquina’.
A figura do mundo resulta automaticamente da ação de leis da matéria. A ciência cartesiana apresenta a natureza como um objeto exposto diante de nós.

Numa concepção humanista, encontramos em Kant a idéia de subjetividade como poder de ordenação, capacidade de dar leis, de estabelecer a idéia de um mundo ao qual possa referir-me através da minha própria duração. A natureza então vai aparecer como conjunto de todos os objetos dos sentidos. É um simples correlato da percepção.
Para que exista finalidade, é preciso que haja interioridade dos elementos uns em relação aos outros, e esta é uma razão formal para falar em finalidade.
É nos seres organizados vivos que se admite uma finalidade, pois um ser vivo é, simultaneamente, causa e efeito de si mesmo. E é do ponto de vista da finalidade que se percebem analogias nos seres vivos.

Segundo a causalidade, é lógico estabelecer analogias entre as espécies (semelhança). Talvez se deva traduzir isso por uma relação de parentesco (idéia de evolução das espécies), mas esta derivação parental jamais é uma explicação a partir das próprias espécies. Pode-se introduzir a idéia de uma ‘mãe originária’, de uma ‘imagem primordial, ‘modelo’ de todas as espécies, e que seria a espécie humana. E as relações de parentesco entre as espécies não são de forma alguma decisivas, dado que uma relação inversa seria igualmente possível.

A natureza nos apresenta uma finalidade dispersa. Ela é uma demonologia, repleta de forças supranaturais, das quais nenhuma é sobrenatural.

O verdadeiro país da finalidade é o homem interior: como ‘meta final’ da natureza, na medida em que ele não é natureza mas pura liberdade sem raízes.

O homem é antiphysis (liberdade) e arruína a natureza opondo-se a ela. Arruína-a ao fazê-la passar para uma outra ordem. É um pensamento humanista.

Em Bruschvicg há o desmembramento da idéia de Natureza, entendida como sistema de princípios e leis. Não cabe mais distinguir entre o que se nos aparece e a verdade total, e isso tanto fora de nós como dentro de nós. Não existe mais diferença entre o que sei de mim e o que sou. O universo é o objeto construído. A idéia de mundo um encontro de sincronismos. E o corpo é como “dados sensíveis, zoologicamente humanos”.

Seguindo o exorcismo de Deus à natureza, iniciada no humanismo, vemos no romantismo a natureza para além do mundo e aquém de Deus: não é nem mundo nem deus. É um produtor que não é todo poderoso, que não chega a terminar sua produção. Movimento de rotação que nada produz de definitivo. É ao mesmo tempo passiva e ativa, produto e produtividade, que tem sempre necessidade de produzir outra coisa.
Finalismo e causalismo são ambos rejeitados como artificialismos. Surge uma filosofia que confronta o artificialismo humano como o seu exterior, com a Natureza.

Em Schelling, os homens não passam de imagens, sonhos. Eles são como um homem cuja impotência é comparável àquela de um povo que, em seus esforços otimistas em direção àquilo que chama de civilização e de Luzes, chegou a tudo dissolver em pensamentos.
Para Schelling, tudo nasce a partir de nós, a Natureza é confiada a nossa percepção. Somos os pais de uma natureza de que somos filhos. É no homem que as coisas se tornam por si mesmas conscientes; mas a relação é recíproca: o homem é o vir a ser consciente das coisas.

A filosofia de Schelling procura restituir uma espécie de indivisão entre nós e a Natureza considerada como um organismo, indivisão condicionada pela indivisão sujeito-objeto. Apresenta o aparecimento do homem como uma espécie de recriação do mundo, como o advento de uma abertura. A natureza, por essa abertura, quando chega a criar o homem, vê-se ultrapassada em algo novo. Mas o inverso é igualmente verdadeiro. Não só a natureza dever tornar-se visão, mas é preciso que o homem se torne Natureza.

A filosofia de Bergson esta aparentada a de Schelling, na idéia de uma unidade como algo que é obvio e primordial. Ele admite na origem uma unidade das espécies, uma unidade do vegetal e do animal; unidade nativa, primordial. Uma paisagem está ali antes de nós e toda concepção realista se constrói por empréstimo a coisa percebida, ao universo da percepção. Apreendemos em nossa percepção, simultaneamente, um estado de consciência e uma realidade independente de nós. E em nossas percepções há duração, memória, numa descolagem em relação ao real. O organismo, nunca é idêntico ao seu passado, mas nunca está separado dele: ele se continua.
E quanto ao homem, não se pode dizer que ele seja a meta e o termo da evolução, nem que esteja ‘pré-formado no movimento evolutivo’; ele é o resultado de uma luta contingente que essa espécie sustentou com as outras espécies. Se o homem pode ser considerado um sucesso, é porque tem em si o não acabado e porque traz em si o elemento da criação.
“tudo se passa como se um ser indeciso e vago, ao qual se poderá dar o nome que se quiser, homem ou super-homem, tivesse procurado realizar-se e só o conseguiria abandonando pelo caminho uma parte de si mesmo”
A vida é o esforço da consciência para reencontrar-se na matéria.

Em Hursserl vê-se um desejo em compreender aquilo que antcede a ciência e a filosofia - o “mundo antes de toda tese” é o mundo percebido. Tem-se assim a idéia de Natureza como esfera das coisas puras, é a idéia do real, do em-si, essa natureza contem tudo, ela estende-se por si mesmo, sem limite: é isso que ele chama de universo. Não há corte decisivo entre pedra e o anima, entre o animal e o homem.
Eu organizo com meu corpo uma compreensão do mundo, e a relação com meu corpo não é a de um Eu puro, que teria sucessivamente dois objetos, o meu corpo e a coisa, mas habito o meu corpo e por ele habito as coisas. É simultaneamente objeto e sujeito.

Para a percepção originaria a Terra é indefinível em termos de corpos: ela é “o solo de nossa experiência”. Dela não se pode dizer que é finita ou infinita, não é objeto entre os objetos. A Terra não está móvel, nem em repouso, ela esta aquém. Os animais, são apenas variantes da humanidade. O que há de mais variante em nós, nós o pensamos a partir do que temos de mais singular.

Tudo o que se passa não se explica pela interioridade, nem pela exterioridade, mas por um acaso, que é a concordância entre esses dois dados, e que é assegurada pela Natureza.

Segundo as concepções modernas, o processo é um dado , num instante, não há nada, cada instante é apenas um núcleo destinado a agrupar os dados, assim não há natureza em um instante; toda realidade implica um avanço da natureza.

A tentativa de encontrar a natureza é uma tentativa interna.
Se percebemos no presente uma estrela que já não existe, estamos percebendo no presente o que, de fato é passado.
Whitehead nos convida a conceber relações não seriais entre o espaço e o tempo.;
Existe uma espécie de reciprocidade entre a natureza e eu enquanto ser senciente. Sou uma parte da natureza e funciono como qualquer evento da natureza: sou, por meu corpo, parte da natureza, e as partes da natureza admitem entre elas relações do mesmo tipo que as de meu corpo com a natureza.
O que percebo é, ao mesmo tempo, para mim e nas coisas. A percepção se faz a partir do interior da natureza. ‘Não existe um meio de deter a natureza a fim de olha-la.’ Ela é sempre nova a cada percepção mas nunca é sem passado. A natureza vai ser concebida como um desdobramento espaço-temporal.

A natureza esta sempre de passagem: somente a apreendemos em suas manifestações, sem que essas manifestações jamais a esgotem.
A natureza é memória do mundo; o que foi não pode deixar de ter sido, quer o saibamos ou não.
Se a vida é a instauração das bases da historia, tal historia é também diferente da historia do homem, é uma historia natural; não é uma historia individual, é o futuro de um tipo, de um ser coletivo.

Passado e futuro encontram-se e misturam-se num presente mal definido.
A natureza é aquilo em que estamos, é mistura.